terça-feira, 22 de janeiro de 2013

EU VI A CARA DA MORTE, E ELA ESTAVA VIVA!


Li esta frase do Cazuza dia desses, e lembrei a ocasião em que ela me serviu perfeitamente.

Como jornalista há quase 30 anos, entrevistei criminosos de toda espécie, cobri assaltos, sequestros, rebeliões em presídios, tiroteios e outros momentos de tensão e violência em vilas e morros de Porto Alegre, e até no Complexo do Alemão, no RJ. Vi muitos cadáveres na guerra urbana entre lei e bandidagem.

Mas nada se compara ao momento em que o cano do revólver está a centímetros da nossa cabeça, na mão de um alucinado.

Foi em 1999. Começou muito rápido, como sempre é nestas horas.

Era um sábado à noite, por volta de 22h, em Guaíba.

Eu procurava vaga para estacionar numa rua próxima à casa noturna mais agitada da cidade, a OD Beer.

Fui convidado, como representante da mídia, como jurado de um concurso para escolher a garota da capa de uma publicação local, focada em acontecimentos da sociedade.

Era amigo do casal de colegas que organizou o evento.

Mas ninguém jamais me viu escolhendo a beldade da noite.

Manobrava o carro, e tive a impressão de ouvir um tiro perto dalí.

Em seguida vejo três rapazes com bonés enterrados correndo pela calçada á minha direita, vindos da direção da boate.

Mal deu tempo de juntar os fatos.

Quando pensei em sair dali, um deles correu na minha direção, de arma em punho, apontando pra mim.

Tentei sair do carro pra entregar ao assaltante, mas quando botei a perna pra fora ele me empurrou de volta pra dentro.

Abriu a porta de trás e se jogou ali aos berros. 

 - Anda, anda, arranca esta merda, cai fora daqui se não te estóro a cabeça, porra vamo, vamo, sai daqui com esta merda!!!!!

 Era a velha tática de neutralizar a vítimas metendo o pavor aos gritos e ameaças, apontando a arma e sem dar chance pra se dizer nada.

Acelerei e saímos dali.

- Anda porra, acelera, mete o pé nesta merda, vou te apagá, seu merda!!!!

Fui rodando em alta velocidade por ruas que não conhecia, seguindo um roteiro imposto histericamente pelo sujeito armado e enlouquecido no banco de trás.

Instintivamente, no meio daquela confusão toda, fui tentando organizar meus pensamentos e atitudes.

A primeira coisa que fiz foi tentar avaliar o estado psicológico do tipo, ou seja, se o sujeito que me apontava o revólver contra a cabeça estava doidão. 

Não sei de onde me veio todo este equilíbrio, mas foi assim que agi imediatamente.   

- Ok, ok, fica na boa, já estamos indo, - eu dizia nas pausas entre os gritos dele

Bandido chapado é completamente imprevisível. Age tresloucadamente e pode puxar o gatilho sem nenhum motivo, e sem se dar conta do que fez.

À medida que nos afastávamos do centro, ele passou a berrar menos. E dizia o tempo todo para eu não me virar, ou tentar vê-lo pelo retrovisor.

- Ô meu, não me olha, eu te queimo aqui mesmo!!

Para tranqüilizá-lo, virei o espelho para baixo, num ângulo que seria impossível enxergar qualquer coisa na parte de trás do carro.    

Pude notar que ele se acalmava aos poucos. Estava menos ofegante e irrequieto.

Tive a impressão que acomodou-se mais relaxado no banco de trás, pois eu não sentia mais a respiração dele perto de mim, nem a voz agressiva colada nos meus ouvidos.

Passou a falar menos. Mas queria saber sobre mim.

Eu era uma interessante vítima casual: estava bem vestido, de paletó e gravata, e dirigia um carro possante, um reluzente Golf que eu recém havia comprado, zerinho.

Respirei fundo e tomei a iniciativa da conversa.

Falei que faria o que ele quisesse, desde que não me agredisse e se mantivesse calmo. E que eu só queria voltar ileso para minha casa e minha família.

- Então fica na tua que não vai acontecer nada! Dirige aí e vamo nessa! - Rosnou o bandido, aboletado no banco traseiro.

Concluí que ele não estava drogado como eu temia. Ou pelo menos, não tanto. Não enrolava a língua, e articulava razoavelmente as palavras.

Me senti então mais seguro pra manter a iniciativa no diálogo.

Decidi tentar “ganhar” o cara no papo.

- Fica tranquilo aí atrás,  vamos resolver isso e tudo mundo fica numa boa.

Àquela altura, era só o que eu podia fazer pela minha segurança. Uma tentativa de manter, de alguma forma, o controle da situação.

Embora ele aparentasse estar menos agitado, e de não ter me agredido fisicamente em nenhum momento, nada daquilo era garantia de que as coisas não poderiam mudar de uma hora para outra.

Já tínhamos saído de Guaíba. Rumávamos agora para Porto Alegre, pela BR 116. Mantive uma velocidade constante, em torno dos 90 km/h.

Perto do pedágio, uma viatura da BM passa lentamente por nós. Pensei em mil formas de chamar a atenção, mas nenhuma delas me pareceu segura o suficiente.

De trás de mim, veio o aviso ameaçador:

- Fica frio, tu tá na minha mira...

Não havia mesmo o que fazer. Segui em frente, mantendo a velocidade. A viatura foi se afastando.

Melhor assim. Vou manter a cabeça no lugar e este cara sob “meu controle”, pensei.

Puxei conversa de novo, para dar a ele o perfil sobre mim que eu achava mais apropriado para aquela situação.

Cuidando para não parecer intimidador, falando num tom amistoso, disse que era jornalista, que trabalhava como repórter e apresentador na RBSTV, que conhecia todos os delegados de polícia, comandantes da BM, vários juízes.

Queria que ele pensasse que, se decidisse me eliminar, teria que lidar depois com uma grande repercussão e uma caçada pesada por parte das autoridades.

Enquanto eu falava, ele ouvia quieto e remexia na minha pasta de trabalho. Encontrou minha carteira e viu a identidade funcional da RBS.

- É, tô vendo aqui, tu é mesmo da RBS, tu não me mentiu!

- E porque mentiria? Daqui a pouco tudo isso acaba, tu vai pro teu lado, e eu vou pra minha casa seguir minha vida, não é?

-É isso aí. Te liga na estrada aí, meu!

Encontrou no chão do carro a mochila com os patins “rollers” das minhas duas filhas. Perguntou sobre a família. Na época eu era casado com a mãe das minhas meninas, que tinham então 9 e 5 anos.

Me senti à vontade pra perguntar da família dele, como vivia, mas sem perguntar nada que sugerisse uma tentativa de obter informações sobre onde ele pudesse ser encontrado.

E rolou um papo quase surreal. Bandido e vítima falando amenidades, mas com um revólver no meio a lembrar a realidade daquela situação.

- E tu já entrevistou bandido que nem eu?

- Muitos. Conheci inclusive o Melara. Cobri a rebelião no Central e depois o julgamento dele.

- Melara era o cara! – falou com orgulhosa admiração.

 
SOB A MIRA DA ARMA, A POUCOS METROS DE CASA
 
Entramos em Porto Alegre. Ele queria ir até um caixa eletrônico para sacar o que pudesse da minha conta.

Fomos até a agência da CEF na esquina da Múcio Teixeira com a José de Alencar, no Menino Deus. Naquela época ainda existiam as cabines que ficavam na calçada.

Estacionei. Não havia ninguém na rua. Era por volta de 23:30h. Ele reassumiu um pouco do tom ameaçador de antes.

- Desce aí que eu vou logo atrás de ti. Não faz besteira!

- Fica frio, já chegamos até aqui, não será agora que eu vou me arriscar. Relaxa!!

Eu disse aquilo num tom quase impositivo. Me sentia cada vez mais seguro para sutilmente impor alguma tranqüilidade naquela situação.

Entramos na cabine. Saquei apenas R$ 200,00. Era o máximo permitido para saques naquela hora. Uma medida adotada recentemente pelos bancos para desestimular os assaltos relâmpago.

Ele se irritou e a coisa ficou tensa de novo.

- Porra meu, só isso??

- Quer que eu tente de novo?? Então presta atenção no que a máquina vai mostrar aí na telinha!!

Repeti a operação e mostrei o aviso de negativa na tela do caixa eletrônico. Ele ficou olhando fixo para a máquina, frustrado.

- Tá, vambora, vambora, pro carro agora, vamo, vamo!!!!

Tomando o caminho para Guaíba, passei em frente à minha casa.

Naquela época eu morava na Borges de Medeiros, num daqueles edifícios altos em frente à praça do canhão, no parque Marinha do Brasil.

Sem dizer nada (óbvio), olhei pra cima e vi as luzes acesas na sacada, na sala e no quarto das meninas. E as imaginei vendo TV com a mãe, tranquilamente, pensando que eu estava em segurança num evento na cidade cujas luzes que elas podiam ver da janela, no outro lado do Guaíba.

E exatamente naquele momento, eu passava debaixo do nariz delas sob a mira de um revólver.

Ele ficou quieto a maior parte do tempo. Aquilo não me cheirava bem.

Eu tentava puxar conversa, ele respondia laconicamente e se calava.

Uma certa tensão começava a se criar novamente naquele carro.

Resolvi então me calar também, e pensar no que poderia acontecer nos próximos lances do roteiro destes dois perdidos numa noite suja.

Entrei em Guaiba e, quando estava chegando ao centro, ele se exaltou novamente.

- Cai fora daquí, no centro não, pra lá, pra lá, anda, anda, porra!!!!! Acelera esta merda aí!!!!!

- Tá, te acalma, vamos por aqui então, mas pra onde??

- Pra lá, pra lá, pra lá, ó, pra longe daqui, porra!!

Segui por uma rua que se afastava do centro. Foi quando ele disse algo que me fez mudar radicalmente de atitude.

- Segue em frente nesta rua aí, lá adiante vô encontrar uns camarada meu, nós vamo pegá eles!

Aí gelei. Não podia permitir que isso acontecesse.

Respirei fundo mais uma vez, e decidi que precisava arriscar:

- Nada disso, eu não vou pegar nenhum dos teus parceiros. Contigo eu me entendo, a gente já se conhece, tu já tem o que queria. Mas eu não vou pegar mais ninguém! De jeito nenhum!!

Quando parei de falar, quase exaltado, pensei que ele ia pular em mim e enfiar o cano do revólver na minha orelha.

Mas não.

-Tá meu, relaxa aí, dirige aí na boa. Vai por mim!

As casas foram rareando. O cenário já era quase rural. Então ele deu a ordem:

- Ó meu, tá vendo aquela lomba de areião alí, subindo o morro ali? Segue pra lá, a gente vai lá encima!

Diminui bem a velocidade pra ganhar tempo e pensar rápido na situação.

Já era uma rua de terra. Olhei adiante e vi que o caminho à frente era engolido pela escuridão.

Estávamos passando pelos últimos postes da iluminação pública.

Naquele momento eu percebi que era hora de ir para o tudo ou nada.  

Freei o carro bruscamente.

O som dos pneus se arrastando travados no areião ecoou no breu daquele lugar ermo.

E falei, sempre sem olhar pra trás, com o tom decidido de quem não tem mais nada a perder, e joga a última cartada:

- Não vou subir lá! Não vou mesmo!! Agora, sai do meu carro!! Vai na boa! Não te vi, não sei quem tu é, não vou dar queixa. Mas cai fora!! Vai pra tua vida que eu vou pra minha!

Infindáveis e apavorantes segundos de silêncio absoluto tomaram conta do ambiente naquele carro.

Agora já era, tá feito.

E seja o que Deus quiser!

Ouvi ele soltar um suspiro profundo atrás de mim, antes de dizer:

- Tá meu, me dá esta porra de óculos aí no painel. E este teu relógio aí também. Apaga a porra do farol. Assim que eu sair, tu te manda ouviu? E não olha pra mim!! Se tu me entregar eu te pego!!

Eu ainda estava cheio de adrenalina e atitude. E arrisquei retrucar em tom de aviso:

- Se tu vier atrás de mim, tu sabe que vai ser pesado pra ti, lembra tudo que eu te falei...

O sujeito saiu do carro e se foi, caminhando pela estrada morro acima calmamente, até sumir na escuridão, poucos metros adiante.

Parei no posto do ICMS antes da ponte do Guaíba, buscando um “orelhão”.

Eu havia recém me mudado, e o telefone fixo ainda não estava instalado. Tinha deixado o celular, o único da família, em casa.

Minha mulher atendeu no ato. Notei que estava assustada, mas rapidamente eu disse que estava tudo bem, e que em minutos estaria de volta em casa.

Só depois eu soube de um lance tragicômico que aconteceu enquanto eu vivia os momentos finais daquela jornada noturna.

Preocupados com a minha demora, os organizadores do evento ligaram pro meu celular.

- Boa noite. Aqui é da OD Beer, de Guaiba. Nós estamos esperando o Azeredo, mas ele não apareceu!

- Ué, ele foi praí há umas duas horas!

A pessoa do outro lado então cometeu esta pérola de sensibilidade:

- O Azeredo tem um Golf azul?

- Sim!!

- Pois é...É que houve uma tentativa de assalto aqui em frente à boate, atiraram num cliente da fila, e parece que os ladrões fugiram levando um cara num Golf azul...Mas tudo bem, não deve ser o Azeredo, né??

(Imaginem quantos Golfs azuis novinhos haveria em Guaiba, com um cara todo engravatado na direção, naquela noite, naquele momento...)

Ela desligou o telefone. Mas no mesmo segundo, entrou a minha ligação do orelhão, evitando o pânico que certamente se instalaria depois daquela desastrada ligação.

E logo eu estava na minha garagem.
Ao sair do carro, percebi que minha cabeça doía, acima do olho esquerdo. Notei então um pequeno corte. Um ferimento provocado pelo empurrão do bandido ao me abordar, fazendo com que o canto superior da porta batesse no meu rosto.

Estava de bom tamanho, perto do que poderia ter acontecido.

 

 

 

 

Um comentário:

  1. Perdi o fôlego e retomei... ufa! que susto... mas tive de rir ao descrever a mancada da organização para tua (na [época), mulher... fico feliz que tudo no fim deu certo... dizem que no fim... TUDO dá certo...

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